segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A Cantora Antropomórfica - Jonas Arrabal

Roteiro dramático

Personagem: cantora

Nosso amor vai durar assim... como o infinito. E eu vou ouvir você tocando, mesmo que dentro da minha cabeça. Preciso de alguma forma acabar com tudo isso. Não consigo pensar em nada. Minha cabeça, minha memória, está tomada por outros pensamentos. Por que você não some daqui? Assim, sozinho, sem precisar fazer com que eu sofra. Vou dar uma de Jimmy Hendrix aqui na minha cabeça. Vou quebrar a sua guitarra em mil pedacinhos, mesmo sabendo que isso não vai adiantar. Você não é esse gentleman, como havia imaginado nos meus melhores sonhos... você... você... eu não sei o que dizer de você, só sei que você não é você.

Vou guardar tudo aqui dentro. Vou tentar guardar. Preciso fazer alguma coisa, preciso agir. Você não irá mais tocar, com essa sua guitarra, os melhores rocks para mim, alucinadas, frenéticas canções. Não quero mais ouvir essa ladainha seca saindo do seu Stradivarius falso made in Paraguai e nem o melhor de Schubert, e nem o melhor de Picasso, de Khalo, de Dali. Pica de aço, khalo no pé, daqui, dali, longe de mim. Quero ouvir músicas fúnebres. Prefiro. DO QUE A SUA MELODIA DO MAL.

Não quero ouvir mais nada da sua boca. Não quero ouvir nada de sua BOCA maldita, que vai querer me enfeitiçar com esses murmúrios do inferno.

Você que vai me ouvir agora: Eu, cantora antropomórfica. Você vai entrar nas minhas gavetas para sempre, vai viver aprisionado dentro do meu quadro, vai provar da minha fumacinha.

EU, Cantora que sou...

(risadas)

Bitte, enganzen sie. Bitte uma ova. Eu tô mandando.

Agora você vai se ajoelhar e vai rezar a melhor das suas orações.

Ande, Reze! É só você levantar meu vestido, afinal eles me fazem usar tudo sem calcinha. Ande, miserável, egoísta. Ich liebe Dich.

(Pausa)

Me sinto bem melhor agora. Ar puro. Essencial. Tem horas que gosto desses cigarrinhos do capeta. Viajo muito. (Pausa)

Ontem tive um sonho frenético, e olha que eu estou limpa. Juro. Não tomei nada. Nem comi daqueles bolos, com ingredientes naturais, você sabe.

Parecia tão real meu sonho. Eu via uma figura, tocando guitarra. De repente se transformava num violino, e depois num piano. Eu ouço a música até agora.

Todos os dias eu sonho com ele. Cada dia uma parte do seu corpo aparece, se revela para mim. (Pausa) Eu juro, não fumei nada. Nenhum cigarrinho do capeta. Nem liberaram nenhum gás do teto. Fazem isso quando querem me dar injeção. Mas eu juro, tô limpa. Como o corpo de criança alimentado só com leite.

Essa noite ele tocava a sua guitarra. Eu vi seus olhos e sua boca, seu nariz e suas orelhas, pequenininhas, redondinhas. A sua guitarra virava um violino e ele tocava. Belíssimo. E seus dedos tocando o piano. Que toque. Que toque suave.

Não me dê nenhuma injeção, senão eu vou esquecer ele. Vou prender a minha respiração quando vocês soltarem aquele gás lá em cima. Vou prender a minha respiração o máximo que eu puder. Podem ser segundos, minutos ou até horas. Ficarei o tempo que for preciso para não apagar com o cheiro forte dessa fumaça branca que vocês me envenenam pelo teto. Ora estou em Auschwitz. Ora estou no Vaticano. Habemus Papa! Grito toda vez que essa fumacinha entra na minha cabeça.

Quero lembrar do seu rosto. Quero lembrar da sua música. Essa noite tudo foi perfeito para mim. Nada ficou no escuro. Agora eu quero tocar seu rosto. Quero dançar com ele, enquanto ele toca seus instrumentos. Variações musicais. Ele tocava Roberto Carlos, ele tocava Schubert, belissimamente em seu piano de cauda. Apaixonadamente com o seu Stradivarius. Freneticamente com a sua guitarra envenenada.

Queria poder sentir outra coisa. Queria não sentir isso aqui. Comprei um caderninho para escrever tudo isso que estou sentindo, mas não deu certo. Isso de diário, coisa estranha, analítica demais. Prefiro fazer meus dramas, pessoais. Assim é mais fácil conseguir o que quero, mas ultimamente não anda dando certo.

Quero morrer.

Vem, vem gás do teto. Entra nas minhas narinas, encha meus pulmões com seu poder afrodisíaco. Fumaça branca, poder medicinal. Me dê agora uma injeção letal para esquecer isso tudo de uma só vez.

O rosto dele está aparecendo para mim. Todas as partes do seu corpo ficam escondidas dentro de gavetas e se montam para mim. Seus instrumentos musicais dão lugar a uma gritaria. Tudo aqui dentro da minha cabeça. (Grita)

Que lugar é esse que ele se encontra? Como ele chegou até mim? Quem o trouxe aqui ? Não sei de nada.

(Sai gás do teto)

Isso. Isso. Faça o seu serviço, gasinho lindo, cheiroso como flor de laranjeira. Me faça esquecer de tudo isso. Queria ser como um peixinho dourado, que acha tudo novidade dentro do seu aquário.

(Música)

Gasinho não tá fazendo efeito, parece talco. Fico com a ponta de meu nariz vermelho, irritado. Nada mais, isso é tudo. Ande, coloque pressão máxima nessa manivela senhor Heinrich Himmler de branco.

(Sai mais fumaça)

Não adianta. Essa fumaça já entrou no meu corpo de tal forma que já acostumei, já consigo vencer. Meu Deus! Estou fadada a viver para sempre aqui, dentro do meu aquário com a lembrança daquele rosto, sem nunca poder tocá-lo, sem nunca poder beijá-lo.

Quero esquecer. Já. E depois sonhar, tudo novamente. E durar essa lembrança, assim, uns 3 segundos, no máximo. Como um peixinho dourado. Para depois eu sonhar com ele novamente, e tudo voltar a ser uma novidade.

Fim do roteiro dramático






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